A rivalidade entre Xiaomi e Huawei, anteriormente restrita aos smartphones, agora estende-se ao mercado dos carros elétricos.
Entre declarações ácidas, recordes de vendas e estratégias industriais diametralmente opostas, os dois gigantes tecnológicos chineses cristalizam a atenção de um mercado automóvel em plena transformação. Por trás da guerra de palavras, está em jogo a conquista da liderança na mobilidade conectada do futuro, com números de vendas que já assustam o mercado chinês e ambições globais claramente declaradas.
O aparecimento da Xiaomi no mercado dos automóveis elétricos mudou o jogo. Em março de 2024, a Xiaomi lançou oficialmente o seu primeiro sedan elétrico, o SU7, seguido de perto pelo SUV YU7, mostrado em maio de 2025 e com uma carreira internacional em ascensão. O sucesso foi imediato: mais de 28.000 entregas em maio, oitavo mês consecutivo acima de 20.000 unidades, e uma produção que ultrapassou a marca de 200.000 veículos em menos de um ano. O SU7 impõe-se como um dos poucos elétricos a manter uma forte procura um ano depois do seu lançamento.
Face a este crescimento, a Huawei, que não produz diretamente os seus próprios automóveis, mas reúne um ecossistema de marcas através da sua aliança HIMA (Harmony Intelligent Mobility Alliance), multiplica as parcerias com grandes fabricantes chineses: Seres (Aito), Chery (Luxeed), BAIC (Stelato), JAC (Maextro) e SAIC (Shangjie).
A Huawei fornece a tecnologia, o design, a interface e o sistema operativo HarmonyOS, mas deixa a produção e a comercialização a cargo dos seus parceiros. Esta estratégia de “aliança profunda” permite-lhe cobrir rapidamente o mercado, mas dilui a força da sua marca: nenhum destes carros ostenta diretamente o logótipo da Huawei, o que complica a construção de uma identidade forte face à simplicidade do marketing da Xiaomi.
A tensão aumentou durante o último salão automóvel de Shenzhen. Richard Yu, presidente da divisão de produtos de consumo da Huawei, minimizou publicamente a qualidade dos carros da Xiaomi, apontando o seu sucesso “apenas à força do marketing”: “Uma empresa de outro setor, que tem apenas um modelo, já vendeu como pãezinhos quentes. Mesmo que os seus produtos não sejam tão bons, vendem muito bem.”
Sem nunca mencionar a Xiaomi, Yu insistiu na superioridade técnica e qualitativa dos modelos do ecossistema Huawei, ao mesmo tempo que lamentou o seu menor sucesso comercial: “Os nossos produtos são melhores em todos os aspetos: qualidade, experiência, desempenho… mas não conseguimos vender tanto, nem mesmo uma fração das vendas deles.”
A resposta não se fez esperar. Lu Weibing, presidente do grupo Xiaomi, respondeu na rede social Weibo, citando o Prémio Nobel Mo Yan: “A calúnia é, em si mesma, uma forma de admiração.” Defendeu a competitividade dos seus modelos, salientando que o sucesso do SU7 e as expectativas em torno do YU7 assentam na força do produto, no modelo económico e na metodologia da Xiaomi. Lei Jun, fundador do grupo, retomou a mesma citação ao publicar os números das entregas de maio, antes de a eliminar, prova de que a batalha também se trava no terreno da imagem e da comunicação.
Seja a Xiaomi ou a Huawei, como aqui com o interior do Aito M9, os dois gigantes da indústria móvel apostam na ultraconectividade e na tecnologia do seu sistema operativo para seduzir o público.
A dinâmica comercial da Xiaomi é impressionante: o SU7, o primeiro sedan elétrico da marca, ultrapassou 200.000 unidades produzidas em menos de um ano, com picos de encomendas espetaculares desde o lançamento do modelo Ultra (mais de 10.000 em duas horas).
A divisão automóvel da Xiaomi gerou 4 mil milhões de euros de receitas em 2024, com uma margem bruta de 20,4% no último trimestre. O YU7, o primeiro SUV da marca, está prestes a entrar em produção, com uma meta de 350.000 entregas em 2025. A Xiaomi aposta na integração total do seu ecossistema: conectividade, IA, atualizações OTA, gestão domótica a partir do veículo, tudo foi pensado para atrair uma clientela jovem.
A Huawei, por seu lado, conta com a força de seus parceiros: em maio de 2025, a aliança HIMA retomou a liderança das vendas com 44.454 veículos vendidos, contra pouco mais de 28.000 da Xiaomi. Mas o domínio da Aito (Seres) dentro da aliança cria uma dependência arriscada, e a multiplicação de marcas sob a bandeira HIMA complica a compreensão da oferta. A Huawei aposta no poder do seu sistema HarmonyOS, na conectividade e na ascensão tecnológica para se impor, mas ainda precisa convencer sobre a coerência do seu portfólio e a força da sua imagem junto ao grande público.
A “guerra” entre a Xiaomi e a Huawei não se limita a um duelo de números ou declarações. Insere-se num mercado chinês em ebulição, onde mais de uma centena de marcas disputam a preferência dos consumidores e onde a inovação tecnológica se tornou a chave para a sobrevivência. A China representa agora quase 50% das vendas mundiais de carros elétricos, e os dois grupos pretendem exportar o seu modelo para a Europa, onde o YU7 da Xiaomi já foi anunciado como um rival direto do Tesla Model Y.
Por enquanto, nem a Xiaomi nem a Huawei lançaram os seus modelos no mercado português, mas a sua chegada é aguardada com certa atenção, para não dizer tensão por parte de alguns atores tradicionais.